sexta-feira, 20 de maio de 2011

A vida pelo telefone

A vida pelo telefone - Walcyr Carrasco

Como salvar em ligações simultâneas a namorada e o emprego

Durante meses,eu e um amigo nos falamos por telefone. Sempre reclamávamos da escassez de encontros pessoais.
- Precisamos nos ver! - ele dizia.
- Vou arrumar um tempinho! - eu prometia.
Posso ser antiquado, mas acredito que nada substitui o olho no olho. A expressão,o jeito de falar, a gargalhada espontânea,tudo isso dá nova dimensão ao relacionamento. Cumpri minha promessa e fui a seu apartamento. Nos primeiros minutos,falamos da vida como não fazíamos havia bastante tempo. Em seguida,tocou o telefone.
-Um momento.
Iniciou-se uma longa discussão sobre quem compraria os ingressos para um espectáculo. Já estava desligando quando se ouviu o celular. Pediu licença no telefone e ele atendeu. Era alguém discutindo com um problema profissional. Depois de duas respostas, meu amigo disse que, como o assunto era complicado, ia terminar um telefonema e ligaria em seguida. Falou rapidamente com a primeira pessoa, desligou e voltou ao celular. Foi a vez do bip,que tocou insistentemente. Pediu desculpas,foi ver a mensagem.Recado urgente para chamar determinada pessoa. Novamente,trocou mais algumas frases ao celular. Desligou.Pediu-me novas desculpas. Ligou quem o havia bipado. Mais questões de trabalho. Quando anotava alguns detalhes, a linha, digital, anunciou que mais alguem estava querendo ligar. Pediu licença e atendeu a outra linha. Olhou para mim e murmurou desculpas. Combinou rapidamente os detalhes de uma festa-surpresa no fim da semana. Foi fazer um café, com o sem-fio acoplado à orelha.Volta ao celular. Ele tenta botar o pó no coador,com um aparelho em cada orelha e falando nas dois ao mesmo tempo.
- Não,querida,eu tentei ligar pra saber se você queria ir ao espetáculo com a gente!Mas só deu ocupado...O quê? Não, senhor, não estou falando com o senhor,chefe, puxa vida...Claro que o senhor levou um susto...Eu falando assim,querida....Ha, ha, ha....Pois é,meu amor...Meu amor é ela, chefe....Eu quero que você vá ao show....Eu dou um jeito de terminar o relatório até segunda,chefe...Ah,o senhor também quer ir ao show?Bem vou ver se consigo mais entradas e .... Ah!Certo...Meu bem não fique nervosa, não vou trabalhar no final de semana é só um relatório....
Sim mas é claro que vou fazer o melhor chefe... Oh!Meu Deus!!!!
Corri para ajudar com o café, enquanto ele tentava salvar o emprego e namorada ao mesmo tempo. Quase engoliu o celular. Quando terminou,sentou-se exausto. Nesse segundo, alguém ligou e ele lamentou-se longamente:
- Imagine que minha namorada me pressionou justamente quando falava com meu chefe ao telefone, e ele ouviu tudo pelo jeito....
Olhei meu talão de cheques e disquei para verificar o saldo. Aproveitei para falar com os dois amigos.Quando terminava, ele sentou-se na minha frente, palido, mas calmo ,com a bandeja e as xícaras.Em dois rápidos chamados, havia se justificado com ela e se deculpado com ele. Mal pôde perguntar se eu queria açúcar ou adoçante.Entrou um fax.
-Deixa eu ver o que é, pode ser importante.
-Terminou de ler e alguém ligou para saber se tinha recebido. Em seguida, ligou para confirmar alguma coisa que fora escrita na mensagem. Não pôde terminar porque o celular gritou novamente. Meu estômago roncou de fome. Levantei-me e ele fez sinal pra que eu sentasse.
-Já estou teminando.Só preciso mandar um bip.
Observei o relógio demoradamente. Aproveitei o intervalo entre o bip e um novo telefonema para dizer,bem depressa:
-Preciso ir.Depois te ligo.
Sorriu, satisfeito.
-Então me chame depois.Mas não esqueça,hein?
-Mando um e-mail e você me responde. Assim o papo fica melhor.
Gostou da idéia,sem perceber a ironia. Pediu mais um minutinho no telefone, dizendo que ia me levar até a porta e já voltava. Comentou, já tranqüilo:
-Nossa, como a gente tem coisas para falar. Você ficou mais de duas horas aqui e nem botamos tudo em dia.
Repuxei os lábios, educadamente. Certas pessoas estão grudadas aos telefones, celulares, bips e e-mail.Inventou-se tudo para facilitar a comunicação. Às vezes acredito que, justamente por causa disso, ela anda se tornando cada vez mais difícil.

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